FORMA-SE A TEMPESTADE EM OUTRO PONTO

A snr.ª Antonia não perdera o seu precioso tempo, nem desaproveitára a sciencia adquirida por meio das observações da manhã.

Ao voltar a casa, encontrára na rua o snr. José Fortunato, e a elle, como fiel alliada, communicára logo alli o peculio de descobertas, com que enriquecera o thesouro dos seus já numerosos conhecimentos.

José Fortunato horrorisou-se com a serie de estupendas noticias, que ouviu de tão auctorisada bôca.

—Não ha que fiar nos homens de hoje!—foi a sentença que elle lavrou, depois de ponderar os famosos artigos d'aquelle libello diffamatorio.

—A mim não me enganou o melro—fez-lhe notar a snr.ª Antonia.

—Pois olhe que a mim...

—Agora o que é preciso é abrir os olhos fechados, que ha lá por casa.

—Abrir?!... Melhor seria fechar alguns, que já se abriram de mais para elle... Não sei se me entende?

—Entendo, entendo. Não ha de ter duvida. Socegue.

E a snrª Antonia, serenando assim as apprehensões do seu protegido, entrou para casa. José Fortunato ia pensando:

—Se eu avisasse o pae, mas de maneira que não soubesse que era eu...

Cecilia andava contente aquella manhã.

O seu bom coração deixára-se repassar todo de alegrias, d'essas alegrias travêssas, agitadoras, de quem não quer reflectir no que as faz nascer; alegrias que, vindo á luz, gosam da luz como as creanças, as quaes a festejam com risos e cantares, ainda sem saudades do passado, nem incertos temores do futuro, a amargurarem-lhes tão ingenuo prazer.

Pobre rapariga! Mal sabia ella, que bem de perto a seguia a nuvem, que havia de assombrar-lhe o fulgor d'aquelle contentamento!

Antonia machinava em silencio contra ella. Á similhança da aranha, em traiçoeira emboscada, aguardava paciente que aquella buliçosa borboleta, que voava em volta de si, viesse prender as azas na sua enredada teia.

Cecilia demorava-se porém pouco tempo junto d'ella, e pouco tempo em toda a parte. Lembrava uma avezita prisioneira, quando, ao amanhecer de um dia de sol desanuviado, após longos de nuvens e de chuva, bate as azas, salta de poleiro em poleiro, esvoaça de encontro ás grades da gaiola, e ensaia de novo o canto, havia muito interrompido.

Occupada com os preparativos do que ella chamava a festa do pae, Cecilia não parava um momento. Descia ao quintal, para colher flores; escondia-se no quarto, para formar ramos, e com elles enfeitar as jarras; passava á sala de Manoel Quentino, para que a ausencia não fosse estranhada, e com o fim de dizer ao pae algumas palavras de affecto; depois voltava ao quintal e sempre com a ligeireza e agilidade, proprias d'aquelle corpo flexivel e elegante e d'aquella nervosa compleição.

De quando em quando, chegava tambem á janella, esperançada em que um feliz acaso lhe satisfizesse não sei bem que secretas aspirações, as quaes talvez a leitora adivinhe.

Foi em uma d'estas occasiões, que Antonia, encontrando-se com ella no corredor, lhe disse á queima-roupa:

—Já esta manhã vi o snr. Carlos.

Cecilia perturbou-se; mas inquiriu, affectando indifferença:

—Aonde?

—Ia a saír de casa. Entrou com uma senhora nova para uma carruagem...

—Havia de ser Jenny, a irmã...

—Ai, não; não era, não, senhora. Essa tinha saído com o pae, logo pela manhã, que m'o disse a snr.ª Joséfinha. Esta tal, que eu digo, chegou de fóra. Pelos modos... é das taes comediantes do theatro... que elle conhece.

—Comediantes?!—disse Cecilia, não procurando já disfarçar a inquietação.

Após este preludio, a snr.ª Antonia entrou de alma e coração na materia, que esgotou completamente. Disse quanto ouviu, quanto viu e, mais ainda, quanto pensou e concluiu de tudo o que ouvira e vira, graças áquelle vigor de deducção logica, que era dos mais caracteristicos dotes d'esta senhora.

Cecilia, comquanto lhe parecessem exageradas as opiniões da criada, sentia que se lhe ia enlutando o coração ao ouvil-a; e que toda aquella disposição para rir e cantar, com que lhe principiára o dia, se lhe estava transformando em irresistivel desejo de chorar.

No estio dos nossos climas amanhece ás vezes o dia puro e formosissimo; o céo é azul; resplendentes os raios do sol; tepida e perfumada a viração, que agita as folhas dos arvoredos; pouco a pouco, parece que o sol desmaia; que desbota o azul do céo; que nos abafa a atmosphera inflammada; accumulam-se no horizonte, e espalham-se depois por todo o firmamento, nuvens de um azulado de chumbo;—fórma-se a trovoada.

Esta manhã de Cecilia foi bem similhante a um d'estes dias de verão.

Quando Antonia acabou de expôr as conceituosas reflexões a respeito do caracter e vida de Carlos, e de provar á saciedade ser elle possuidor das peiores qualidades d'este mundo, Cecilia separou-se subitamente d'ella e correu a fechar-se no quarto.

Foi com as faces pallidas e com os olhos vermelhos que ella appareceu diante do pae ao jantar. Contrastava tanto com estes vestigios de tristeza o sorriso, a que pretendia obrigar os labios, que o effeito era mais triste ainda.

Todo se alvoroçou o coração de Manoel Quentino, ao vel-a; tão contente pela manhã, e agora assim! Olhava para a filha, mas não se atrevia a interrogal-a.

Cecilia bem fez por se mostrar jovial; fallou sempre durante o jantar, mas havia tanto de facticio n'aquella vivacidade, que ninguem se podia illudir, quanto mais o pae!

Reinou, durante todo o dia, entre Manoel Quentino e a filha aquella especie de mutua desconfiança, que se dá sempre com duas pessoas, quando ha entre ellas um segredo, guardado por uma e suspeitado por outra, e no qual ambas evitam fallar.

Aproximou-se a noite.

José Fortunato foi pontual.

Cecília estava cada vez mais agitada; o coração era-lhe disputado por esperanças, misturadas de receios, de ver chegar Carlos á hora promettida, e por o presentimento, que lhe segredava que elle não viria aquella noite.

A impaciencia, que d'aqui lhe nascia no espirito, revelava-se nas mais pequenas cousas. Quanto mais se fechava a noite, tanto mais era para notar em Cecilia aquella especie de excitação nervosa, em que as occorrencias do dia a haviam lançado.

Chegou a ser cruel para com José Fortunato.

Ás vezes, até as respostas, que dava ao pae, saíam-lhe com certo azedume, de que immediatamente se arrependia, empregando depois tanto ardor nas desculpas, que ainda mais afligiam e inquietavam o velho.

Segundo o costume, era ainda á doença, e só á doença, que elle attribuia aquillo tudo, e por vezes, chamando a filha a si, insistiu, depois de a beijar, em lhe tomar o pulso.

Manoel Quentino, que não entendia cousa alguma de organisações nervosas, julgava ver na frequencia das pulsações em Cecilia um symptoma evidente de febre e, por sua vontade, já teria rodeiado a filha de todo esse apparato medico, com que, sob pretexto de combater uma doença, tantas vezes se aggravam incommodos ligeiros.

Deram sete, oito, nove horas, e Carlos não apparecia.

A snr.ª Antonia andava com ares triumphantes. José Fortunato trocava olhares de intelligencia com ella.

—Estou muito admirado da demora de Carlos!—dizia Manoel Quentino.—Está decidido que não vem.

—Será melhor trazer o chá—lembrou Antonia.

—Será melhor esperar que lh'o mandem trazer—acudiu Cecilia com frieza.

Manoel Quentino, ao ouvir o tom d'esta resposta, fixou tristemente os olhos na filha. Estranhava-a.

—O snr. Carlos teve pelos modos hoje outras distracções—observou José Fortunato.

—E eu que o diga—acrescentou Antonia.

—Que diabo estão vocês a rosnar?—perguntou Manoel Quentino.

—É que...—ia Antonia a explicar-se, quando Cecilia a interrompeu.

—Ande, Antonia, ande; traga então o chá, ande; avie-se.

E disse isto com a impaciencia de quem não admittia demoras.

Antonia obedeceu. Cecilia deixou tambem por um pouco a sala.

O snr. José Fortunato aproveitou o ensejo para fazer o seu amigo sciente do que havia, em relação a Carlos.

Muito contra o que esperava, em vez de o ver indignado e horrorisado quasi, achou-o com umas disposições para levar o caso a rir, que o maravilharam.

—Aquella cabeça não toma rumo!—dizia Manoel Quentino—Nem eu sei como por tanto tempo aturou o serviço do escriptorio! E olhe que foi bom e real serviço o que elle fez! Inda estou para saber como aquelle diabo de rapaz pôde em tão pouco tempo fazer o que a muitos leva annos! Mas então com que... esta manhã... Hein? Fugiu o passaro da gaiola? E de carruagem! Fugirá a sobredita senhora com o rapaz para o deserto? Eh! eh! eh!... Bem; então... n'esse caso... vamos nós tomando o nosso chá, snr. Fortunato, vamos. Já o podiam ter dito; escusavamos de ter alterado as horas...

Quando Cecilia voltou á sala, inda Manoel Quentino ria, a bom rir.

—Cecilia—disse-lhe elle—vamos ao nosso chá; voltamos hoje aos nossos antigos habitos, filha. Isto de passaros novos fogem, pilhando a gaiola aberta... Os que ficam são estes, como o snr. José Fortunato, que já estão trôpegos de todo... Eh! eh! eh!...

O snr. José Fortunato não gostou demasiadamente da imagem. Manoel Quentino proseguiu:

—Aqui o amigo contou-me agora a historia de uma certa carruagem e de um certo rapaz, que Antonia lhe disse... é muito engraçada... Eh! eh! eh!

—Eh! eh! eh!—fez o snr. José Fortunato tambem—mas ficou-lhe bastante caro o entrar no duetto, visto que Cecilia o castigou, dizendo:

—Engraçada? Então é por excepção. Não é essa a principal qualidade das historias do snr. Fortunato.

José Fortunato pôz-se logo muito serio; Manoel Quentino olhou espantado para a filha.

Episodios d'estes reproduziram-se durante todo o serão d'aquella noite. Que triste não era a alegria que Cecilia affectava, ao trazer para o quarto do pae as flores, que preparára de manhã, cheia de contentamento! Lidar com flores, assim, com tanta melancolia, só quando se enfeita com ellas um tumulo. Marejava-lhe nos olhos o pezar do coração; de pouco lhe valia o sorriso nos labios. O serão acabou cêdo. Cecilia precisava de estar só; queria-se livre de todo o constrangimento, queria poder chorar, sem receio de vistas curiosas, de perguntas indiscretas, de reflexões impertinentes.

Será necessario dizer que velou toda a noite?

Levantou-se na madrugada seguinte com resolução formada.

—Eu é que era louca—pensava ella—illudi-me sem fundamento... acreditei... e por que acreditei eu?... De que me queixo?... Nem direito tenho a resentir-me. Paciencia!—dizia a meia voz, suspirando—Hei de ter força bastante para tirar esta loucura d'aqui.—E levava a mão á cabeça, e, depois de reflectir, murmurava, mais baixo ainda, descendo-a para o logar do coração:—E d'aqui nada terei que arrancar?

Manoel Quentino foi n'essa manhã para o escriptorio. A convalescença era completa, mas para o ser tambem a sua alegria seria preciso que, ao despedir-se da filha, não tivesse notado no semblante d'ella outra vez a antiga expressão dolorosa.

Horas depois d'elle saír, passava Carlos, segundo o costume, por baixo das janellas, d'onde ordinariamente Cecilia o esperava.

D'esta vez, achou-as fechadas, e corridas as cortinas.

Carlos estranhou aquillo, e por muito tempo não desviou os olhos d'ellas.

Através d'essas desapiedadas cortinas alguém o observava porém. Era Cecilia.

Vejam como ella tentava arrancar da cabeça, ou antes do coração, o que chamára «loucura»?

E desejaria devéras arrancal-a?

Sem ser vista, seguia todos os movimentos de Carlos; viu-o passar; olhar com attenção para as janellas; caminhar mais de vagar á medida que se afastava; parar, e, parecendo tomar uma subita resolução, retroceder, atravessar a rua e entrar para o portal da casa.

Cecilia recuou, como se podesse temer ser vista de fóra.

Cêdo ouviu tocar a campainha da cancella.

Cecilia estremeceu e dirigiu-se ao corredor.

Já ahi encontrou Antonia, que descia para ver quem tocava.

—Antonia—disse-lhe rapidamente Cecília—se for alguem a procurar-me... diga-lhe que... que não posso fallar, que... estou doente... Seja quem for... Entende?

—Entendo, sim, menina—respondeu Antonia, com um sorriso de quem entende de mais.

Foi com modos desabridos que recebeu Carlos...

Este perguntou-lhe se Manoel Quentino tinha ido de facto para o escriptorio, porque, vendo todas as janellas fechadas, lembrára-se de que tivesse talvez recaído.

Antonia respondeu:

—Pois fique descansado. Foi para o escriptorio, foi, sim, senhor. Elle agora está de todo. E a menina manda dizer que não póde fallar a ninguem, porque está doente.

—Doente?!—perguntou Carlos com uma inflexão de voz, que fez quasi arrepender Cecilia, que o escutava, da ordem que dera á criada.

—Não é cousa de cuidado, graças a Deus;—proseguiu esta—mas, em todo o caso, não a deixará tão cedo receber visitas... de ceremonia. E ha de dar-me licença, que tenho a minha vida.

E, acto contínuo, ouviu-se o bater da cancella, que se fechava.

—Antonia—disse Cecilia á criada, assim que esta chegou ao patamar, trazendo nos labios um sorriso de victoria—a fallar a verdade você foi de uma grosseria!

—Ora deixe lá, menina. Tudo é preciso com certa gente.

Carlos, ao sair do portal, pensava:

—Despeitos! Será por eu não ter vindo hontem? Deus o queira; tudo se explicará em meu abono e depois o direito a uma compensação será optimo advogado na minha causa. A indifferença era peior.

D'alli foi Carlos para o escriptorio, onde deu a Manoel Quentino os parabens, pelo seu restabelecimento.

—Sinto—acrescentou—não ter podido hontem festejar, como tencionava, o seu ultimo dia de doença, mas o que houve lá em casa... Já sabe?

—Já sei—respondeu Manoel Quentino, que se mostrava algum tanto embaraçado.

—Esta manhã ia com tenção de saber de si—continuou Carlos.—Vendo todas as janellas fechadas, receiei que se tivesse sentido peior. Soube porém que era sua filha que se achava incommodada.

—Cecilia?!—exclamou Manoel Quentino, já assustado.

—Socegue—respondeu Carlos, sorrindo, porque o espanto de Manoel Quentino acabava de confirmar as suspeitas, que tivera—pela maneira por que me fallou a criada, imagino que não é de gravidade o incommodo. Nem tempo tive de averiguar d'isso, tal foi a pressa com que ella me fechou a porta. A boa mulher parecia ter mêdo de mim. Fallou-me com um arreganho!

Manoel Quentino fez que sorria; mas era evidente que alguma cousa lhe pezava no coração.

Depois de curta hesitação, aproximou-se de Carlos, e ainda com modo constrangido, disse-lhe, chamando-o de parte:

—Snr. Carlos, eu tenho-o por um homem de bem; por isso prefiro fallar-lhe com franqueza a andar com jogo encoberto, que nem é para o meu genio, nem para o seu.

Carlos ficou surprendido com aquellas palavras, tão inesperadas como mysteriosas.

—Então que temos, Manoel Quentino? Falle. Parecem communicações graves as que tem para me fazer—dizia elle, olhando-o interrogadoramente.

—Escute. Eu sei os favores que lhe devo e sei a fé que se póde depositar no seu caracter, que será tudo quanto quizerem, menos capaz de uma infamia.

Carlos escutava-o cada vez mais admirado.

Manoel Quentino proseguiu, augmentando-se-lhe o embaraço com que principiou:

—Mas... no mundo, em que vivemos, ha a verdade e ha as apparencias, e... não basta sómente attender á primeira, é preciso tambem salvar as outras...

—Mas a que vem tudo isso?—perguntava Carlos.

—A propósito de uma... de uma loucura, mas que, apesar de saber que o é, eu tenho obrigação de attender. Esta manhã veio ter ao escriptorio pela porta interna uma carta anonyma. Queira lel-a, e depois dirá o que devo fazer.

A carta, cuja lettra era visivelmente disfarçada, dizia:

«Alguem, que toma a peito a reputação dos seus amigos, avisa-o de que as visitas do snr. Carlos a sua casa, estão já dando que fallar á vizinhança. Lembre-se de que, pela sua reputação, esse rapaz é uma visita pouco propria em qualquer casa, onde existe uma menina de dezoito annos.»

Assignado: «Um amigo desinteressado.»

Carlos, acabando de ler esta carta, passou-a para Manoel Quentino, dizendo-lhe com profundo despreso:

—Estas são ferroadas de insectos, que se esmagam com o pé.

—Não julgue que me deixo levar por esses protestos de amizade desinteressada;—disse Manoel Quentino—mas, tanto peior se, como suspeito, ha antes malevolencia n'isto. A bôca, d'onde saíram estes conselhos, espalhará a calumnia; e, se tenho coragem para me rir d'ella, quando se refira a mim só, estalar-me-hia o coração, se de minha filha se dissesse uma só palavra que a affligisse, que lhe causasse uma lagrima.

—Tem razão—respondeu Carlos, curvando a cabeça, pensativo.

—Agora diga; que me aconselha que faça? Confio no seu cavalheirismo, e por isso é a si e a mais ninguem que peço conselho.

—Obrigado, Manoel Quentino—respondeu Carlos, apertando-lhe a mão.—É preciso que se me fechem as portas da sua casa.

—-Carlos! O senhor bem vê que eu não lhe mereço essa ironia.

—Não é ironia. É effectivamente preciso que eu deixe de visital-o. Eu saberei comprehender a sua posição; acredite-me. É justo que pague a leviandade, com que me afiz a habitos, que, reconheço-o hoje, não eram talvez os que a minha indole me pedia. Paciencia.

Manoel Quentino abraçou-o commovido.

Á noite, Mr. Richard e Carlos e muitos dos seus amigos assistiram na capella ingleza do Campo Pequeno ás ceremonias funebres pela velha Kate, em cuja sepultura o proprio Mr. Richard lançou, segundo o costume inglez, os primeiros punhados de terra.

No fim do enterro, Carlos despediu-se de Manoel Quentino, que viera assistir ao acto.

O bom homem, já habituado á companhia de Carlos nos serões, não teve mão em si que lhe não dissesse:

—Venha commigo, Carlos; ao menos hoje ainda. Riremos um bocado; isto de ir para casa com as ideias de um enterro na cabeça, não é grande cousa... Venha. É dar muita importancia ao mundo, privarmo-nos, por causa d'elle, da...

—Não, Manoel Quentino; convem por agora interromper as minhas visitas. Talvez um dia o procure, mas... Adeus, adeus.

E voltou a casa.

Jenny viu-o tão melancolico, que lhe disse:

—Charles, quando d'antes tinhas alguma cousa que te affligisse, confiavas-m'a. Por que já o não fazes agora?

—Jenny, concede-me algum tempo. Talvez, dentro em pouco, eu tenha muito que te dizer e muitos conselhos a pedir-te.

Foi a resposta que obteve.

Carlos não faltou á palavra que dera a Manoel Quentino.

Dois dias se seguiram a este sem que a vizinhança do guarda-livros tivesse que reparar nas assiduas passagens de Carlos por aquella rua, nem a snr.ª Antonia de soffrer a contrariedade das suas visitas.

Mas, se na sobredita vizinhança houvesse quem depois da meia noite estivesse acordado, poderia ás vezes ver passar um homem por diante das janellas fechadas d'aquella casa, e olhal-as como se esperando que ellas a final se cansassem de sua desesperadora discrição.

Taes eram já as proporções que havia tomado em Carlos o que Jenny chamára uma phantasia!

Porque esse homem era elle.

Chegára-se a maio. Era uma d'estas noites de luar, serenas, tepidas, perfumadas, em que um instincto irresistivel nos leva a procurar as arvores, a escutar de perto o murmurio das fontes. Abafa-se nas salas.

Demorára-se Carlos d'esta vez diante das janellas de Cecilia em uma d'aquellas contemplações, de que só os espiritos frios podem ter animo de zombar, quando certo rumor na pequena janella de grades, que se abria no muro do quintal de Manoel Quentino, lhe chamou a attenção.

Carlos retirou-se para a parte assombrada da rua e esperou. A janella abriu-se, e o luar, batendo em cheio do lado d'ella, illuminóu a suave figura de Cecilia.

Carlos permaneceu immovel.

Cecilia estava só; e quem, se não ella, tinha n'aquella casa imaginação bastante para se seduzir com os encantos de uma noite assim?

Recostando-se á janella, a filha de Manoel Quentino conservava-se tambem immovel. Havia tanta languidez no reclinar da cabeça sobre a mão, tanta belleza e poesia n'aquella figura pallida, que a phantastica luz do luar mais pallida fazia, que, ainda sem ter a imaginação de Carlos, era possivel quasi acreditar por momentos ser aquillo uma apparição de noite de estio, como, nas suas lendas, as concebe a phantasia popular.

Que lisongeira voz segredou ao ouvido de Carlos, que era n'elle que aquella mulher pensava? Vaidades de coração, e tantas vezes mentirosas illusões dos desejos, quem ha ahi que possa gabar-se de nunca vos ter experimentado?

Cecilia foi subitamente despertada d'aquelle quasi sonho, em que parecia arrebatal-a a claridade do luar, por a voz de alguem que lhe pronunciava o nome por baixo da janella.

Cecilia reconheceu, estremecendo, aquella voz. Era a de Carlos.

—Ó snr. Carlos!—exclamou ella, sobresaltada e fazendo um movimento instinctivo para retirar-se.

—Escute—disse Carlos—escute-me. São poucas palavras só as que tenho a dizer-lhe. Vim aqui sem esperança de lhe fallar. Contento-me ha muitos dias com menos. Ver as janellas da casa em que mora tem-me bastado. Mas, uma vez que o acaso a trouxe ahi, deixe-me não perder a unica occasião que tenho agora para lhe dizer o que desejava...

—Mas bem vê que...

—Ouça-me. Dei a minha palavra a seu pae de que não voltaria a esta casa. Houve alguem interessado em interromper as minhas visitas, e conseguiu-o, porque eu mesmo julguei necessario interrompel-as. Acreditará que o fiz sem custo, Cecilia?

Cecilia não respondeu, porque não podia.

—De hoje em diante só um motivo me póde trazer de novo aqui, a sua casa, á luz do dia, e aos olhos de todos; mas antes, preciso interrogar o seu coração, Cecilia. Elle só me póde auctorisar a adoptal-o, esse motivo que digo.

Cecilia ganhou coragem e conseguiu emfim responder:

—Snr. Carlos, a doença de meu pae acabou. O generoso procedimento que teve para com elle, durante os dias d'essa doença, creia que fez nascer em mim sentimentos de... gratidão, que nunca mais esquecerei. Recordo-me de que fui a primeira a implorar o seu auxilio, e sei de que importancia foi o que me concedeu. Por nós quiz o snr. Carlos abandonar, e por muito tempo, habitos de vida proprios da... sua idade, e... da sua posição... O ultimo dia da enfermidade de meu pae, pelo menos, devia para si, snr. Carlos, ser o primeiro dia de liberdade e... e foi. Se meu pae entendeu que devia exigir... ou pedir-lhe que terminasse o... sacrificio, não me compete a mim ir de encontro ás resoluções de meu pae. Não vejo a necessidade de adoptar qualquer motivo para renovar umas visitas, que hoje não teem razão para serem renovadas... por isso...

—Mas, Cecilia, e se essa razão, e forte, e irresistivel, e urgente, estiver em mim, no meu coração?...

—Snr. Carlos, espero que me faça a justiça de acreditar que...—e a voz de Cecilia tremia ao dizer isto—que eu sou ainda superior a esses galanteios. Se as circumstancias, que acompanharam o nosso primeiro encontro, lhe poderam deixar impressões que o levem a tratar-me assim, peço-lhe que se recorde de que Jenny, de que sua irmã, ainda me trata como amiga, depois de saber tudo quanto n'aquella noite se passou.

—Cecilia!

—Adeus, snr. Carlos. Sei que ha muita nobreza de sentimentos na sua alma e por isso espero d'ella que comprehenda a necessidade de acabar com isto. Adeus.

E retirou-se apressadamente da janella.

Carlos ficou por muito tempo immovel no logar em que Cecilia o havia deixado, e sem saber como explicasse tão rigorosa severidade.

Não tinham decorrido muitos minutos, assomou á mesma janella um vulto que, curvando-se para a rua, disse em tom de zombaria, para Carlos:

—Muito boa noite. Com licença.

E fechou as portas da janella.

Era a snr.ª Antonia, que tinha espiado de longe Cecilia, sem que conseguisse ouvir o dialogo d'ella com Carlos.

Logo que a sua jovem ama se retirou, correu a observar quem estava na rua, viu e reconheceu Carlos ainda junto do muro.

Carlos, achando-se surprendido, estremeceu e partiu d'alli inquieto.

—Saberia ella que a ouviam e por isso fallaria assim? Ou espial-a-hão sem que o desconfie? Alguma cousa deve ter-se passado, desfavoravel para mim, para ser assim tratado. A minha falta só não explica...

E chegou a casa, pensando n'isto tudo.

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