Sodomia

sexualidade não direcionada à reprodução, especialmente sexo anal e oral

Sodomia é uma palavra de origem a partir de uma interpretação de uma passagem bíblica usada para designar atos considerados imorais praticados pelos moradores da cidade de Sodoma. Desde há alguns séculos que o termo sodomia significava práticas sexuais contra-natura, no entanto, a palavra "sodomia" não possui raiz bíblica e deriva de interpretações casuais e seletivas que desconectaram o termo de seu contexto original. Nos escritos, o "erro de Sodoma" é descrito em Ezequiel 16:49-50, onde o texto hebraico menciona "avon Sedom" (עֲוֹן סְדוֹם), traduzido como "a iniquidade de Sodoma", que consiste em arrogância, fartura de pão entre alguns e desprezo pelos pobres e a falta de compaixão. Esses atos refletem negligência social, ganância e desumanidade, enfatizando violações éticas relacionadas à justiça e hospitalidade, consideradas importantes no contexto histórico-cultural da sociedade. A conexão posterior entre "sodomia" e sexualidade é uma leitura isolada que ignora o contexto histórico e linguístico, desconsiderando o foco bíblico em questões de amor ao próximo e empatia[1].

Espanhóis e o genocídio dos "sodomitas". Gravura do período colonial das Américas.

Origem

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A palavra sodomia tem origem em uma interpretação particular acerca do episódio da "Destruição de Sodoma", descrito na Bíblia, livro do Génesis, capítulo 19, muitas vezes ignorando seu contexto original, histórico-cultural. No capitulo, por si, é narrado que Deus enviou dois homens (também referidos por mensageiros ou anjos), para avaliarem a conduta dos habitantes de Sodoma e Gomorra, cujo «clamor [era] imenso, [agravando-se o seu pecado] extremamente.» (Gen, 18, 20). Em Gênesis 19, todo o capítulo revela claramente que o pecado de Sodoma estava relacionado ao abuso sexual e à violência, pois a tentativa dos homens da cidade de estuprar os anjos disfarçados de hóspedes é o ponto central do relato, demonstrando uma clara transgressão contra a hospitalidade e o respeito ao estrangeiro. Outros profetas, como Ezequiel 16:49-50, deixam claro que a destruição de Sodoma foi motivada por arrogância, avareza e a falta de compaixão ao próximo, citando a soberba, a fartura de pão e a negligência com os pobres e necessitados. Na Antiguidade, a hospitalidade era um valor fundamental, especialmente nas culturas hebraica e mesopotâmica, onde acolher os estrangeiros e protegê-los era considerado uma obrigação moral e religiosa. Essa perspectiva se extende a outras culturas da região do mediterrâneo. Na Antiguidade, a hospitalidade era considerada um dever sagrado, com destaque em culturas como a grega, onde a violação desse princípio era vista como um grave delito. Na mitologia grega, como no caso de Filemon e Báucis, a hospitalidade também era central, tendo sua cidade destruída e ambos poupados por sua generosidade e justiça, com Zeus punindo aqueles que falhavam em acolher bem os estrangeiros, refletindo a importância de proteger e receber os hóspedes com respeito e generosidade.[2]

«À tarde chegaram os dois anjos a Sodoma. Lot estava sentado à porta de Sodoma e, vendo-os, levantou-se para os receber; prostrou-se com o rosto em terra, e disse: Eis agora, meus senhores, entrai, peço-vos em casa de vosso servo, e passai nela a noite, e lavai os pés; de madrugada vos levantareis e ireis vosso caminho. Responderam eles: Não; antes na praça passaremos a noite. Entretanto, Lot insistiu muito com eles, pelo que foram com ele e entraram em sua casa; e ele lhes deu um banquete, assando-lhes pães ázimos, e eles comeram. Mas antes que se deitassem, cercaram a casa os homens da cidade, isto é, os homens de Sodoma, tanto os moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados; e, chamando a Lot, perguntaram-lhe: Onde estão os homens que entraram esta noite em tua casa? Traze-os cá fora a nós, para que os conheçamos. Então Lot saiu-lhes à porta, fechando-a atrás de si, e disse: Meus irmãos, rogo-vos que não procedais tão perversamente; eis aqui, tenho duas filhas que ainda não conheceram varão; eu vo-las trarei para fora, e lhes fareis como bem vos parecer: somente nada façais a estes homens, porquanto entraram debaixo da sombra do meu telhado. Eles, porém, disseram: Sai daí. Disseram mais: Esse indivíduo, como estrangeiro veio aqui habitar, e quer se arvorar em juiz! Agora te faremos mais mal a ti do que a eles. E arremessaram-se sobre o homem, isto é, sobre Lot, e aproximavam-se para arrombar a porta. Aqueles homens, porém, estendendo as mãos, fizeram Lot ir para dentro da casa, e fecharam a porta; e feriram de cegueira os que estavam do lado de fora, tanto pequenos como grandes, de maneira que cansaram de procurar a porta.» (Gênesis 19:1–11)

De acordo com a narrativa, as duas cidades foram destruídas pelo Senhor que fez cair do céu uma «chuva de enxofre e de fogo» (Gen 19, 24), pouco depois do episódio descrito.

Interpretações

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Religiosos fundamentalistas, influenciados por interpretações equivocadas e/ou preconceituosas, têm associado a destruição de Sodoma à sexualidade, ignorando o contexto claro de abuso sexual e violência no relato de Gênesis 19, onde o pecado é a tentativa de violação forçada, falta de hospitalidade, e não orientações sexuais consensuais como a homossexualidade, erroneamente e preconceituosamente associada. Além disso, outros profetas oferecem uma visão mais abrangente: Ezequiel 16:49-50 aponta que Sodoma foi condenada por arrogância, fartura de pão e descaso com os pobres e necessitados, enquanto Isaías 1:10-17 critica a hipocrisia religiosa, associando os pecados de Sodoma à injustiça social e à falta de compaixão. Esses textos demonstram que a verdadeira condenação divina estava fundamentada em egoísmo, opressão e violência, não em questões de sexualidade.

Através de hermenêutica e estudiosos é possível encontrar noções que o pecado de Sodoma não seria a homossexualidade, mas sim a falta de hospitalidade, uma vez que os anjos são convidados da casa de Lot e os homens de Sodoma querem praticar maldades com eles[3], sustentando-se esse dúbio argumento no texto de Hebreus 13, em que o apóstolo Paulo cita a importância da hospitalidade como um privilégio, ensinando a não deixar essa prática da hospitalidade esquecida (Hebreus 13:2).

Na Antiguidade, a hospitalidade era um valor sagrado, tendo por exemplo as culturas hebraica e a grega, onde receber bem o estrangeiro era visto como um dever moral e uma expressão de virtude. Na mitologia grega, por exemplo, Zeus era o patrono da hospitalidade, punindo aqueles que violavam essa obrigação, como na história de Filemon e Báucis. Da mesma forma, a narrativa de Sodoma reflete essa perspectiva, condenando a violação brutal dos deveres de acolhimento e respeito ao estrangeiro, destacando o desprezo pela hospitalidade como um pecado gravíssimo e contrário aos valores da época.

A história da tentativa de Lot de oferecer suas filhas aos agressores em Sodoma (Gênesis 19:8) reflete o contexto cultural da Antiguidade, onde a hospitalidade e a proteção ao hóspede eram prioritárias, muitas vezes acima até da própria família. Esse padrão de valores é encontrado em outras narrativas antigas, como nas leis do Código de Hamurabi, que protegiam viajantes e hóspedes, e nos relatos de hospitalidade na cultura mesopotâmica e hebraica. Essas tradições destacam o quanto a hospitalidade era central, mesmo quando implicava decisões moralmente complexas aos olhos modernos, reforçando a ênfase na proteção do estrangeiro como princípio sagrado.

Outra questão destacada é a de que "sodomia" seria uma referência a um "estupro coletivo".[4] O texto bíblico não fala da "relação consensual entre duas pessoas" e sim de uma tentativa de realizar uma violação colectiva, por "todos os homens da cidade" sobre os dois estrangeiros, visitantes de Lot: (...) cercaram a casa os homens da cidade, isto é, os homens de Sodoma, tanto os moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados (...) e ...Meus irmãos, rogo-vos que não procedais tão perversamente... somente nada façais a estes homens, porquanto entraram debaixo da sombra do meu telhado. Eles, porém, disseram: Sai daí. Disseram mais: Esse indivíduo, como estrangeiro veio aqui habitar, e quer se arvorar em juiz! Agora te faremos mais mal a ti do que a eles. E arremessaram-se sobre o homem, isto é, sobre Lot, e aproximavam-se para arrombar a porta...

História

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Nos séculos anteriores ao século XIX, não havia a categoria homossexual, que viria a surgir com o discurso médico. Até então, existia a figura do sodomita, que não era uma categoria identitária, mas alguém que cometia o ato da sodomia. Para compreender como e por que houve esta transição de concepção enquanto ato para identidade sexual, temos que percorrer o caminho da construção da categoria homossexualidade através da história.[5]

Na Inglaterra, durante o governo de Henrique VIII, a bestialidade foi considerada crime passível de pena de morte, permanecendo assim até 1861. Bestialidade era definida como qualquer ato contra a natureza (sodomia), fosse entre homens e mulheres, homens e animais ou homens e homens.[6] coloca que o ponto importante desta lei é o de que ela fala de atos e não de pessoas, ou seja, a sodomia não estava vinculada a um determinado tipo de pessoa, mas era vista como um comportamento possível a qualquer indivíduo.

Fazia-se a distinção entre dois tipos de sodomia, a sodomia própria, praticada homem com homem ou homem com mulher e a sodomia imprópria, praticada entre duas mulheres. Se fosse provada a culpa do denunciado, prendia-se somente os que houvessem cometido a sodomia própria.

A sodomia brasileira na primeira visita no Santo Ofício no Brasil, foi realizada pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que não o relaxava o braço secular para se executar a pena capital, já que a Santa Igreja não poderia manchar seu nome com sangue. Apenas a sodomia própria era castigada com a prisão e sobre a sodomia imprópria, não foi escrita uma só linha que mencionasse algum tipo de pena a ela, dando-se a entender que tanto o Santo Ofício, como os teólogos, padres e o próprio autor dessa obra, que baseou esse título nas Constituições do Santo Pio V, ignoraram e fizeram vista grossa a sodomia cometida entre mulheres. Diferentemente do que ocorre nas Ordenações Filipinas, nas quais a punição para o crime de sodomia se estendia tanto aos homens quanto às mulheres que o cometessem entre si, mesmo sendo prevista na teoria, na prática isso não ocorria. Também nas Ordenações se previam a morte dos culpados, fato esse que não ocorria as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em que apenas o culpado de sodomia própria era preso.

Tanto nas Ordenações Filipinas como nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, não há nenhuma explicação que indique de que maneira poderia se dar a sodomia, seja entre homens, seja entre mulheres ou até mesmo entre um homem e uma mulher. Outro fato bastante notório é que já naquela época (séculos XVI, XVII e XVIII), existia uma grande preocupação em condenar as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Exemplo disso, são as previsões que as Ordenações Filipinas e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia fazem ao pecado da molície, caracterizando-o como masturbação entre homens ou entre mulheres. E se existia tamanha preocupação é porque com certeza havia também uma enorme incidência desses casos.

A sodomia feminina sempre foi tratada como um tema ambíguo e os inquisidores nunca conseguiam chegar a um consenso sobre como ela poderia ser praticada entre mulheres. Por isso, em 1640 as relações sexuais entre mulheres passaram a não mais pertencer à alçada inquisitorial.[7]

No século XVIII, havia dois tipos de corpos (homem e mulher) e três tipos de gênero (masculino, feminino e sodomita), uma vez que o sodomita experienciava seus desejos como resultado de educação ou socialização corrompida, não devido a uma condição do corpo.[8] Na sociedade burguesa emergente daquele século, o sodomita tinha importância, pois garantia a manutenção das relações de poder entre homens e mulheres, já que destacava o comportamento sexual (desejo por homens, sentido por sodomitas e mulheres) como marca de diferença de gênero (homens só desejavam mulheres). Isso nos remete a Laqueur (apud Nunan, 2001:8), que estabelece que a busca por estabelecer diferenças só ocorreu porque "essas diferenças se tornaram politicamente importantes."

Embora houvesse o sodomita, este era única e exclusivamente pautado no comportamento sexual, não existindo, ainda, a categoria homossexual. Esta só viria a surgir no século XIX, com o discurso médico. Foi depois do advento da separação da medicina geral do corpo da medicina do sexo, com a publicação, em 1846, da Psychopatia Sexualis, de Heinrich Kaan, que passou a vigorar "um domínio médico-psicológico das 'perversões', que viria a tomar o lugar das velhas categorias morais de devassidão e da extravagância".[9]

Criminalização

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As Ordenações Afonsinas, primeira consolidação de leis em Portugal, feita no século XV, declaram que a sodomia é o mais torpe, sujo e desonesto pecado ante Deus e o mundo, impondo ao infrator que seja queimado até virar pó, para que não reste memória de seu corpo e sepultura:[10][11]

Ver também

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Referências

  1. Poli, Jonas Ernesto. «NEPE SEARCH - Bíblia Interlinear - Ezequiel 16:49 - com sua tradução direto do Hebraico». NEPE SEARCH. Consultado em 15 de dezembro de 2024 
  2. Lima, Adelina (4 de outubro de 2021). «O Mito da Hospitalidade: a história de Baucis e Filemon». Segredos do Mundo. Consultado em 15 de dezembro de 2024 
  3. Bortolini, José; Tire suas dúvidas sobre a Bíblia, 1997
  4. ____, Sodomia uma mancha no casamento, 2012.
  5. [1]
  6. Weeks ([1996]1997: 45)
  7. [2]
  8. Trumbach (1992: 96)
  9. (Foucault, [1978]2005: 111)
  10. «Ord. Afonsinas, Livro 5,Tit. 16 Das Alcoveiteiras, e Alcayotes.(Cont.) Tit. 17 Dos que cometem peccado de Sodomia.». www1.ci.uc.pt 
  11. «Ord. Afonsinas, Livro 5,Tit.17 Dos que cometem peccado de Sodomia.(Cont.) Tit.18 Do que matou fua molher polla achar em adulterio.». www1.ci.uc.pt 

Ligações externas

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